ARACAJU/SE, 5 de maio de 2024 , 16:23:39

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Reelegibilidade do Chefe do Poder Executivo em municípios limítrofes e inelegibilidade reflexa

Após o equacionamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da controvérsia relacionada à figura do prefeito itinerante, a criatividade da classe política deu origem a uma nova situação igualmente merecedora de reflexão e potencialmente desafiadora dos limites e do alcance da hermenêutica constitucional.

Não sendo mais possível, após o novo entendimento do STF, o exercício de um terceiro mandato eletivo de prefeito, mesmo que pleiteie candidatura em municipalidade diversa, grupos familiares passaram a recorrer à alternativa de lançamento de candidaturas em municípios limítrofes que integram uma mesma área de conurbação.

Este artigo, portanto, tem por finalidade suscitar um debate a respeito da incidência da inelegibilidade de cônjuges e parentes de prefeito reeleito em municípios vizinhos.

A chamada inelegibilidade reflexa está prevista no § 7º do art. 14 da Constituição e a finalidade da norma nele contida é, de um lado, evitar a formação de grupos políticos hegemônicos monopolizadores do exercício de mandatos eletivos e, do outro, obstar que o processo eleitoral e, em especial, o próprio exercício das atribuições que decorrem da titularização dos cargos públicos eletivos sejam incorporados ao âmbito de interesses exclusivamente particulares em detrimento dos demais cidadãos.

Não se desconhece que a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral está orientada no sentido de reconhecer que cônjuge e parentes de prefeito reeleito não são inelegíveis para o mesmo cargo em município vizinho, salvo se este resultar de desmembramento, de incorporação ou de fusão realizada na legislatura imediatamente anterior ao pleito. Todavia, não soa acertada, em casos como tais, a fixação de uma presunção absoluta de não incidência da inelegibilidade reflexa inscrita no § 7º do artigo 14 da Constituição de 88, uma vez que a realidade pode perfeitamente revelar a existência de municípios vizinhos criados por fusão, desmembramento ou incorporação há mais de uma legislatura, onde seus habitantes, especialmente em áreas de intensa integração, seguem sofrendo influência de membros de um mesmo grupo familiar estrategicamente instalados nos municípios contíguos, por meio do direcionamento de obras ou pela seletiva prestação de serviços públicos.

Diferentemente do que assesta a jurisprudência do TSE, essa não parece ser uma hipótese tão improvável. Não são raras as situações em que municípios vizinhos e econômica, social e culturalmente interligados, mesmo autonomizados há mais de uma legislatura, possuam comunidades que se comunicam o tempo todo com extrema facilidade e que prestam serviços públicos com inegável reciprocidade, valendo-se, para esse fim, até mesmo de munícipes domiciliados no ente contíguo.

A inflexibilidade dessa premissa temporal gera uma intransponível barreira cognitiva para uma investigação mais detida a respeito do eventual malferimento ao princípio republicano mesmo na hipótese fática de municípios limítrofes ligados por estreitos vínculos sociais, econômicos e políticos onde grupos familiares possam exercer decisiva influência política sobre as respectivas comunidades, quebrantando, por outro prisma, a tão almejada paridade de armas entre os protagonistas das disputas eleitorais.

É certo, todavia, que, pela literalidade do texto constitucional, a inelegibilidade não interditaria a candidatura de cônjuge ou parente de prefeito reeleito para o mesmo cargo em município vizinho. Acontece, que, ao se interpretar a referida norma, é dever do operador buscar a sua teleologia, especialmente à luz do princípio republicano, o qual, como bem destaca Fábio Konder Comparato, impõe que o bem comum do povo esteja “sempre acima de interesses particulares, de família, classes, grupos religiosos, sindicato e, até mesmo, entidades estatais”.

Não se está, aqui, a defender uma interpretação ampliativa de restrição a um direito fundamental – no caso, o político na sua dimensão passiva. É que, conforme asseverado, o próprio “para quê” (Ayres Britto) da norma estabelecedora de inelegibilidade é de evitar o continuísmo familiar, bem como a utilização indevida da máquina administrativa em favor de determinada parentela, resguardando o republicanismo, ainda que em outra — porém contígua — jurisdição.

A interpretação teleológica do § 7º do artigo 14 da Constituição parece não agasalhar a pretensão de cônjuges e parentes de prefeito reeleito para o mesmo cargo em município vizinho, inclusive na hipótese de este resultar de desmembramento, de incorporação ou de fusão realizada em legislatura não imediatamente anterior ao pleito. A realidade fática bem pode revelar que municípios vizinhos que hajam se autonomizados do ponto de vista político-administrativo há mais de uma legislatura sigam mantendo estreitos vínculos sociais, econômicos e políticos, gerando uma ambiência perfeita para que grupos familiares possam exercer decisiva influência política sobre as respectivas comunidades.

Paralisar a atuação da Justiça Eleitoral em situações como essas, além de permitir o malferimento ao conteúdo normativo do princípio republicano, representa, em última análise, um perigoso desdém à inesquecível advertência de Georges Ripert no sentido de “quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga, ignorando o Direito”.